PRA TE FAZER DORMIR

Wednesday, December 17, 2008

Novena dirigiu-se à praça principal com seu pavê. Em Poema, cidade de Novena, era tradicional a troca de sobremesas depois do almoço de domingo. As pessoas saiam pouco a pouco de suas casas, pequenos pacotinhos de saciedade, caminhando a passos lentos de digestão e carregando seus pratinhos de doces. Voltavam para casa com o quitute alheio e com o compromisso de devolver o recipiente na segunda-feira pela manhã.
Poema não era populosa, quase cabia numa praça; espaço pequeno, visto que praça, sendo, caso o contrário, parque, bosque ou algo que valha. Embora isso trouxesse vantagens para o prefeito, para a polícia e para o carteiro, era um problema para moças solteiras como Novena. Faltavam bons pretendentes. Poema, cidade sensível e, portanto, majoritariamente feminina, tinha na figura masculina uma raridade disputadíssima. Todas as jovens em idade de casamento se viam obrigadas, caso não quisessem acabar na secura da velha solteirice, a comparecer a cada evento social para se exibirem e lembrarem aos cobiçados solteiros poemenses de que ainda estavam disponíveis. A troca de sobremesas na praça principal era um desses eventos.
Está claro agora o porque da pressa com que se dirigiu Novena à praça principal. Se Deus ajuda quem cedo madruga, Santo Antônio não teria porque não ajudar quem cedo se colocasse no gramado da praça. Tinha a menina os olhos em Carlos, solteiro da vez na cidade, filho do boticário e exímio jogador de peteca, esporte municipal.
Mas enquanto seus olhos procuravam o atleta, seus ouvidos foram surpreendidos por uma voz que declamava em meio ao barulho dos talheres:
“... que te case os lábios com meus beijos, que me dê em mãos os teus desejos...”
Passou seus olhos da procura por Carlos para a busca pelo trovador. De onde sairiam aqueles versos, que chegaram tão íntimos aos seus ouvidos que fizeram Novena se sentir tocada de maneira imprópria?
“...e encontras no meu peito o quarto nosso, que eu me instalo em teu abraço enquanto posso...”
Novena não precisou de mais. Jogou o pavê por cima do ombro e correu atrás da voz que já amava. Sabia que não era de Carlos ou de qualquer outro solteiro conhecido em Poema. Era frase nova, desconhecida. Era o casamento que esperava.
“... que eu te juro não chorar, senão de amor...”
Ela corria tanto que a voz ditando os versos começou a distorcer-se. Cada vez mais aguda, a fala foi tornando-se incompreensível, mas ainda perfeitamente localizável. Corria cada vez mais rápido, competindo contra solteiras que ela não via, mas que jurava estarem também correndo em direção ao seu trovador. E foi na beirada da praça que ela encontrou.
Clara estava sentada num banco, prostrada sobre um toca-fitas, ouvindo as mensagens de um distante namorado. A moça não se lembra muito do rosto dele; há anos partiu com o pai doente em busca de melhores ares para o pulmão. Tudo o que tem são os versos gravados em fitas que chegam semanalmente pelo correio. E uma saudade que dói um bocado.
“... que eu te juro não chorar, senão de amor.”
Ela nem se lembraria do nome do rapaz, caso Novena perguntasse. Mas Novena tinha um nó tão grande na garganta que qualquer pergunta sairia perdida no pranto. Resolveu sentar-se, calada, ao lado de Clara, e lá deixar-se ficar. Solteira.
Em Poema nunca houve amor feliz.

SECO

Thursday, November 27, 2008

Daqui de onde eu vejo
Daqui dessa saudade
Me falta paisagem...
Às vezes um bocejo
Às vezes, caridade
Me sinto uma bobagem...
Não sinto quase nada
Não sou pra quase nada
Nem sei se sou verdade...
É sempre um pulso lento
Sempre a falta de vento
Pra sempre a mesma idade...
Já fui muita vontade, gritei meus mil lampejos
Agora eu choro calada
De todos meus desejos, sobrou-me a crueldade
Viver caiu no esquecimento...
Faz tempo, eu não me vejo
De mim tenho saudade
Sou mera paisagem...

FISIOLOGIA DO CORAÇÃO PARTIDO

Saturday, October 25, 2008

“Os peixes são os animais que, com sistema circulatório desenvolvido, têm o coração mais simples”, já me dizia a apostila nos tempos de cursinho. Um átrio, um ventrículo, só. Sem mais delongas. O sangue entra venoso, passa pelas brânquias, vira arterial e só se atreve a voltar ao coração quando se gasta em venoso novamente. Simples e objetivo; esse é o coração do peixe.

Tentei explicar à minha menina que o processo evolutivo fez nosso coração tão complicado. Falei da complexidade que é ser governado por um órgão com dois átrios, dois ventrículos, veias e artérias à balde e o sangue indo e revindo hesitante, sem coragem de ganhar o corpo de uma vez. Não tinha como: meu coração do jeito que era só dava para ter amor inquieto. Mas ela - lástima! - era bem menina mesmo e, em matéria de coração, ainda estava no primário brincando de ligar os pontos. Ela reclamava do meu jeito imprevisível; não lhe dava segurança. Foi embora atrás de paz e partiu-me o coração.

Eis que hoje me aparece a tal menina, já menos escolar e querendo retomar o meu amor de ir-revir. Ela quer o amor de coração complexo, de juras e repentes carinhosos. Ora vejam, quer que eu ame como amei há muito tempo.

Sinto muito, minha menina, mas o meu amor mudou. Não é mais aquele amor tão complicado de mamíferos e aves. Não é mais amor complexo de circulação indecisa e barroca em seus rococós. Meu amor agora é amor de coração partido ao meio, um átrio, um ventrículo, só. É amor simples e objetivo.

Meu amor agora é amor de peixe.

AMORATÓRIA

Tuesday, October 21, 2008

Difícil é declamar a poesia.
As entonações nunca dão certo
As pausas me confundem
E os sentidos se perdem:
Seu eu falo de rosas (quase sempre)
Me entendem violetas.
Violetas...
E seria eu capaz de poetar sobre violetas
Tendo rosas por aí?
Difícil declamar a poesia.
Melhor pra mim deixá-la em segredo no papel.

NAQUELE PEITO, TUDO O QUE SE PLANTA, DÁ

Thursday, October 02, 2008


Brotou de repente no meio da vista
A Flor imprevista a me desalinhar
Nasceu tão silente quanto uma incerteza
Causou-me estranheza de fazer gritar
Mas abri a boca e saiu-me mil juras
Galantes canduras sem nenhum pudor
Das coisas que disse, só de uma me lembro
“Te esposo em dezembro” e sorriu-me a Flor
Fartei-me das valsas de corpos em claro
Dançando, não raro, ao som do relento
Larguei toda a vida que me circundava
Na hora bastava o meu sentimento
Mas pouco durou a minha valsinha
A Flor não me tinha o mesmo amor
Bem pouco durou a minha quimera
Findou Primavera, morreu-me a Flor.

LOGO VOLTA

Thursday, September 25, 2008

nasaudadequeeusintoprendoapontadesseversoqueseestendecontroversoquetebuscaenquantomintoquenãoachoumamaldadeestartãodistanteassimdopoetaqueteescrevesentimentosbematadospelaspontasamarradosesticadosparatidouapontaquemesobrapraamarrarestuasaudadenasaudadequeestáaqui

A DAMA E O CAVALHEIRO

Wednesday, September 03, 2008

Quando parar essa canção
Desarmo o braço e você sai
Olho pra baixo e conto os passos
De três em três você se vai
Na valsa triste que te leva
Minha mão só se solta e cai.

Mas calma, ainda toca a banda
Você ainda é meu par
Nós dançaremos lentamente
Que é pro ar não se agitar
Pois sei, só o vento que te leva
Antes da música acabar.

Quando eu ficar sozinho ao centro
Desse salão que te perdeu
Não foi você que foi embora
Foi o salão que te escondeu
Eu fecho os olhos para sempre
Finjo que o baile escureceu

Quando parar essa canção
Desarmo o braço e você sai
Nós dançaremos lentamente
Que é pro ar não se agitar
Eu fecho os olhos para sempre
Finjo que o baile escureceu

"...E CHORA"

Thursday, August 21, 2008


Horário livre agora só amanhã, infelizmente. Tá uma temporada bem puxada pra pessoas como eu, nesse ramo da consolação. O povo ta que se angustia de uma maneira que eu quase não venço atender todo mundo em horário comercial. Sempre dou uma esticada até as 18 horas. Não que eu esteja reclamando, fazia tempo que eu não tinha lucro! Viu o preço do papel higiênico como ta? Pois é, antes eu só trabalhava com aquele papel rosa. Clientela reclamava, mas o que eu podia fazer? Agora, chegadas as vacas gordas, só trabalho com folha dupla extra macia.
Seu Manoel, muito prazer. Passa amanhã que te atendo. E avisa os amigos com problemas: dor no coração, aperto no âmago, suspiro crônico, é comigo mesmo. Vinte minutos de colo mais pedaço de papel pra secar as tristezas por 50 centavos de real. Minha pele tá curtida, mas o colo ainda é bom! E outra, agora só trabalho com folha dupla extra macia da melhor qualidade. O preço que cobro tá quase uma caridade.
Veio hoje a Dona Jura, mulher do carteiro, sabe? Pois é, ela é das costumeiras. Me paga no boleto mensal. Sofre de marido ausente, coitada. É o marido pernando na rua e ela soluçando no meu colo. Mas eu não reclamo não. A gente tem que trabalhar; na idade que eu tô, se eu parar eu morro. Liga pra Dona Jura que ela te fala bem de mim.
Passa amanhã que eu te atendo, porque hoje o dia já saturou. Uso amaciante na calça, já te falei? Só uso calça velha que é mais maleável pro rosto do freguês. Deita aqui pra ver, deita? Não? É quase um travesseiro de pelica. Mas vem amanhã que eu te mostro. Cinqüenta centavos o colo e o lenço. Passa amanhã que te atendo, hoje não dá mais.

DECA SIBILO

Monday, July 28, 2008

Eu queria escrever belo poema
Pra menina que tem meu coração
Eu queria pintar de alfazema
Meus dizeres de espantar solidão
Prometi versos vastos bem medidos
Decassílabos, pra ela dançar
Só pedi que na paga do cerzido
Fosse um beijo na boca me alcançar
Pois de tão confiante o meu ditado
Foi-me pago o poema de antemão
Antes mesmo de saber resultado
Mariana beijou-me o amor bufão
Tu dirás: “Mas que sorte, seu danado
Ganhas prenda em juras de ocasião”
Pois dirás por não saberes o fardo
Que carrego nas costas desde então
Desde o beijo que me tomou, amada
Mariana me cobra o pagamento
Mas eu já não consigo rimar nada
Foi-me embora no beijo o pensamento
Minha moça está insatisfeita
Por não ver ser honrado o combinado
Vai na vida ficando rarefeita
Mariana vai me pondo de lado
Me disseram que o meu triste sofrer
Era só um problema de expressão
Que era só tal problema resolver
Que eu teria de volta o meu quinhão
Acontece que eu já espremi com força
Pra ver o que do peito me saía
E não importa o que eu faça, o quanto eu torça

Não sai mais uma gota de poesia.

TAMBORIM

Thursday, July 24, 2008

Bateu uma insônia. De novo.
“Como tudo pode ser assim tão dispensável?”, é só nisso que ela pensa agora. Essa mulher tem alguns anos já corridos. Era de se esperar que, a essa altura da vida, ela já tivesse no coração algo mais que esse vazio. Algo que importasse a ponto de ela guardar dentro do peito. Algo que ela deixasse ficar. Mas não, seu coração é tão oco que o eco que produz ressoa num tamborilar aflito. Tum (tum), Tum (tum), Tum (tum). Vai ver que é isso que a mantém acordada na noite de hoje e em todas as outras. Esse eco alto.
Tendo essa idéia fresca na cabeça, ela olha para o lado oposto da cama. O homem que lá dorme, nú e ressonante, nada mais é que pele e pêlos. Pele e pêlos em um conjunto que não faz nenhum sentido.
Ela enfim o abraça. Não porque o ame, mas porque tem frio e o cobertor está muito longe, caído no chão.
Vai tentar, mais uma vez, dormir.

RÉQUIEM

Monday, June 30, 2008

Não é remorso que tuas lágrimas me causam
Nem desgosto por teu sofrimento vão
Teu choro me chega como a canção
Que anuncia a chegada dos artistas
“Respeitável público!
Quem não rir não paga
Vem, senão acaba
O momento único!”
Claro, estou feliz e não disfarço
Por trazer-te o mais triste querer
Fiz milagre, coisa nobre e altruísta:
Eu trouxe a poesia para a tua pobre rima!

CALADO

Friday, June 20, 2008

É da tua boca curva que eu choro mais a falta.
Quando ainda a tinha pra mim, eram poucas as vezes em que ela ficava seca. Eu quase não deixava. Dançava a minha nas voltas da tua, minha boca largada no meio da curva. Boca. A tua.
Lambia tuas palavras não ditas, engolidas em favor do beijo. Te espiava, oculto pelas tuas pálpebras, me encantava com o teu silêncio de olhos fechados. Me divertia com o teu esforço, tão pequena que tu eras. Diminuta em tua boca rosa-silente.
Não deverias nunca ter falado. Muito menos eu. Engraçado que palavras tão contrastantes possam sair de bocas que se amam imensamente. Falamos tanto que secaram os lábios e granulou o beijo.
Isso era ontem. Hoje vi você e a tua boca. Flagrantemente úmida, por não ter mais que me censurar por horas, ou por ter outra boca a te calar.

H

Tuesday, June 17, 2008

Henrique mora num hiato. Há quem diga que ele está só de passagem, mas ninguém demora tanto tempo pra passar por qualquer lugar. Se demora, já brota raiz da haste.
Bem que eu diria isso a ele, mas Henrique já tem problemas demais. Suas ambições e projetos pro futuro são por demais assanhados. Quer fazer barulho. Sonha com o topo da hierarquia. Sonha sozinho, por não ter ninguém que tenha nele tanta fé.
Deixa que hoje o Henrique se engana. Amanhã, quem sabe amanhã, ele acorda e se decide por uma vida mediana. Que mal há nisso, não é mesmo?
Não é nenhum crime que a nossa história seja um H que ninguém escuta.

PRENDA-ME

Sunday, May 25, 2008

Vem, recebe a minha prenda
Eu quero que entenda
O quanto já sou seu
Nas gotas da minha tinta
Eu quero que sinta
Em cada, um beijo meu
Na morada do seu leito
Entrego-lhe meu peito
Pro seu suspirar
Na sua boca libertina
Canto-lhe:"Menina,
Não vá me escapar"
Depois, corado, me desfaço
De qualquer pedaço
De antes ou depois
Guardo-me feliz, calado
Por ti apaixonado
Poeta de nós dois.

CONSOLO SERVIDO NO COLO

Wednesday, May 07, 2008

Passa.
Digo-te sincero: passa.
Guarde então tuas flores sussurradas
Tuas dores de amor desperdiçadas.
É deixando envelhecer o jovem peito
Que carregas, orgulhoso, imerso em mágoas
Que verás que, dentre as lágrimas
As de amor são sempre as primeiras a secar.

Confia.
Haverás de ter a amada esquecida
Tão desesperadamente longa é a vida...

DESISTO

Sunday, April 20, 2008

Dei ouvidos à voz do Divino
Que se escuta nos lábios do povo
Os meus passos têm um peso novo
Assumi o meu corpo libertino.

Todos sempre me disseram puto
Corrompido e sem nenhum valor
Eu, ferido, cantava em louvor
Meu valores de amor resoluto.

Mas agora, de que vale a pena
Se essa voz que me difama e curra
Sai da boca da minha pequena?

Se minha amada me acha um devasso
De que vale o esforço que faço?
Me entrego à orgia serena!

OLHA SÓ COMO É

Wednesday, April 02, 2008

Eu tenho um problema de concentração. E eu acho, seriamente, que essa vai ser a minha perdição.
É recorrente: estou fisicamente em um lugar e minha cabeça sai ventando para outro. Não é por vontade não, porque vontade eu tenho de juntar cabeça e corpo, mente e carne. O que acontece é que o pensamento se ensaboa e não há o que o segure. Meu corpo está ali num contexto e a mente já por outro se encanta. Fuuuuuuu.

Eu tenho esse problema. Minhas letras estão aqui, mas a poesia já está em outro papel. Eu acho, de verdade, que isso não deve fazer bem.

ESCLARECENDO

Saturday, March 22, 2008

“Ao cair, desvie do chão!”

Quer conselho mais idiota que esse? Mas era assim que a Clarinha filosofava. Transformava frases sem sentido em verdades universais.

“Ninguém prende a respiração a vida toda”

Eu fingia entender todas elas. Não me censure, eu era um garoto com o coração descompassado e com todas as vontades de amar Clarinha. Me tornei seu discípulo mais fiel (e único, para a paz do meu egoísmo).

“Quem ama o que não tem, não sabe a hora que passa o trem”

Sempre que soltava uma de suas verdades-minuto, eu anotava no meu caderninho e dizia que era para que as futuras gerações (“que hei de plantar em Clarinha”) pudessem entrar em contato com seus ensinamentos maravilhosos. Ela se enchia de orgulho e me tocava a perna em agradecimento. Achei que a minha atenção inventada e os recorrentes toques na coxa fariam de mim seu eterno namorado.

Bobagem. Hoje vejo que eu não sabia de nada não. É como já dizia Clarinha:

“Fogo que pega na palha, penteia a navalha e some no além”.

Quarto 94

Friday, March 14, 2008

Perdoa-me o beijo atrasado
Que deixo em tua porta cerrada
Vim dar-te minha pele apressada
Te encontro já em sono velado.

Perdi teus toques suspirados
Suados, das noites em claro
Que faço, se já me é tão raro
Dormir em teus sonhos nevados?

Sem ter a tua boca tardia
Recolho os meus beijos e, arfando,
Retorno à minha cama vazia.

Mas deixo esta rosa atrevida
Que pousa em tua porta pensando

Ser ela a tua nova querida.

DÁ LICENÇA

Tuesday, February 12, 2008

Quero o meu
silêncio
quieto
de pouco
cantar.

Dou minha
voz sem
recompensa
nem compensa
ter outra
em seu lugar.

Quem se
incomodar
com a falta
e com a
verdade alta
das minhas
tão mudas
cadências

PARTA.

Não se
vista
de
rogado.

Mas
deixe um
lápis do
meu lado
para eu
pintar
reticências.

PARA ONDE VÃO AS ROSAS?

Tuesday, January 29, 2008

Secou-me a roseira
Morreu de abandono
Embarcou num sono
De morte inteira
Não ousei tocá-la
Que descanse plena
Na pausa serena
Que agora a embala
Ficou muito rasa
A minha existência
Tomei desistência
Mudei-me de casa
Fingi desapego
Nem missa rezei
Menti, simulei
Um grande sossego
Nem vi quando a rosa
Ao ter-me a partir
Botou-se a sorrir
Toda indecorosa
“- Se partes, te curro,
Pra mim não há volta”
E a rosa em revolta
Virou-me um sussurro.

TRAGA

Sunday, January 20, 2008

Trocou suas unhas pelo cigarro do marido. Tanto roía as unhas Dona Judith que chegava o sabão a doer na hora do banho. Não bastasse o dedo doído por si só, a cabeça também começou a coçar por falta de uma lavagem eficiente. Somados os reveses, achou por bem trocar de vício.
Tem pavor do cheiro de cigarro a Dona Judith. Do cheiro, mas não do gosto. Descobriu que chupando o cigarro apagado, vinha o gostinho queimado do beijo do marido Seu José. Era como voltar à mocidade macia de outros tempos, em que o difícil era conter o beijo inquieto de Seu José, jovem ainda e sem a alcunha de Seu. Agora, Dona Judith cultiva uma língua solitária, fadada ao consolo de um gostinho.
Mesmo avançado na idade, o marido de Dona Judith dava suas caminhadas noturnas. Saía perfumado, com o cabelo e o colarinho igualmente engomados e um cravo estrelado no peito. As horas passavam e Seu José voltava ao lar pouco antes do Sol revelador nascer. Entrava pé enrugado ante pé enrugado, pensando-se oculto no escuro da sala. Mas Dona Judith, sentada no sofá, chupando seu cigarrinho, reconhecia o marido. Mesmo com os cabelos desgrenhados, o colarinho sujo de batom e o perfume misturado, Dona Judith reconhecia o marido e pensava em que canto desse mundo tinha ido parar o cravo do peito marital dessa vez.
“De que adianta tanta goma no cabelo?” – e Dona Judith suspirava o seu cigarrinho, soltando uma baforada muda de fadiga.

NU

Monday, January 14, 2008

Peco às pencas ultimamente
Calo a fala de ternura
Com a fome de sujeira.
Penso que essa festa me é recente
Me vem de um pós vida-dura
E um pré pra-vida-inteira.
De que servem modos e canduras
Se a glória verdadeira
Só se entrega ao descrente?
Tragam-me as gazes e ataduras!
Nessa orgia de primeira
Sangro a minh’alma indecente.
Sinto que essa febre é passageira
E que o gozo inconseqüente
(Injustiça!) pouco dura
Faça, então, minha pele corriqueira;
Leve, mesmo penitente,
Nas lambidas da Fartura.

 
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