PARACUNDÊ

Saturday, May 26, 2007

- Paracundê, José!
- Pára com o quê?!
- Não, mula, paracundê!
- E isso é o quê?!
- Sei lá, ainda não decidi.
- Ah, pare de graça, João.
- E por um acaso eu ri?! Hein? O senhor por um acaso me viu mostrar os dentes? Tô inventando o meu dicionário.
- Mangando de mim, tão cedo o horário...
- Mangando o que, lazarento! Olha a minha cara e vê se eu to mentindo.
- Olha que se tiver te arrebento.
- Olha, seu faminto!
- ...
- ...
- É, tá não.
- Pois então, José! Cansei de falar língua dos outros, vou é fazer a minha.
- E vai chamar o quê?
- Ora, tudo o que tem nome!
- Não, seu leso, vai chamar o que a sua língua?
- Também não sei. Calma lá, acabei de ter a idéia, já quer que eu saia com o nome e o Aurélio publicados?
- Vai chamar Aurélio o dicionário?
- Não sei ainda.
- Ah, você não tem é nada ainda! Só essa idéia fedida na cabeça.
- Pois é certo que tenho! Já tenho uma palavra!
- Tem o que, João!?
- Ué, paracundê.
- E isso é o quê!?
- ...
- E isso é o quê!?
- ...não sei ainda...
- Tá lá! Não sabe de nada. Quer mudar o falatório do povo e tudo o que tem é uma palavra que não quer dizer nada! Grande porcaria é o que essa sua língua é! Como quer mudar o jeito do povo falar com uma palavra só? Abestado.
- Ah, quer saber? Acabei de decidir que eu acabei de acabar a minha nova língua. Chama Paracundê e o único verbete do dicionário paracundense é paracundê! Paracundê pra tudo.
- E o que diabos é isso?
- Vai ser tudo e vai ser nada. Vai fazer com que as pessoas parem de sair por aí vomitando letrinha como se tivesse com o bucho cheio delas. Tudo o que sentir, tudo o que quiser comer, tudo o que amar, tudo o que for tudo e tudo o que não for, a gente chama de paracundê. Paracundê, paracundê, paracundê. Pra que mais que isso? Não é tudo meio que a mesma coisa? Ou a gente quer pra gente ou a gente quer pra longe da gente. Ou a gente gosta ou a gente não gosta. Ou dói ou é bom. Ou cheira, ou fede, ou às vezes nem um nem outro. Ou serve pra comer ou serve pra vestir. Ou lambe, ou mastiga. Ou chuta ou faz carinho. Ou bebe ou passa no corpo. Ou taca fogo ou joga fora. Ou ou ou ou. Chega. Agora é tudo paracundê e tá decidido. Quem quiser que venha na minha.
- Mas homem, use a consciência. Como é que as pessoas vão se entender usando uma língua que tem uma palavra só?
- A gente tá discutindo há meia hora em português e nada da gente se entender.
- ...
- ...
- ...
- ...
- ...
- ...
- ...paracundê, João.
- Paracundê, José!

SINIXTRO

Sunday, May 13, 2007

O que eu gosto é quando ela senta do meu lado, a menina pensante. Senta com a boca cheia de sua pronúncia chiada, de um carioquês preguiçoso. Tímida como um segredo, vem dizendo coisas que eu quase sempre não entendo, mas que devem fazer todo o sentido; soam harmônicas no meu ouvido. E é durante as nossas conversas, as poucas que tivemos e todas as muitas que ainda quero ter, que eu aproveito para tirar o pó das minhas asas e voar pelo espaço do absurdo que montamos juntos, bem lá onde o tempo não passa e as coisas todas perdem a importância. Na verdade, sou obrigado a fazê-lo. Ela sai passarando por aí e eu não gosto muito de ficar sozinho.

Só se deita de olhos fechados. Seja para dormir, seja para me amar. É tímida a minha garota pensante, tímida como um segredo...

ESTUDO SOBRE A UBIQÜIDADE DA TRISTEZA

Friday, May 11, 2007

Olha só que absurdo. Sempre ouvi dos meus professores de Física e das vítimas dos meus constantes pisões em pés alheios:
“Dois corpos não ocupam o mesmo espaço ao mesmo tempo”.
Ok, engoli sem maiores protestos. Faz sentido, tá dito; então pra mim basta. Mas descobri que aceitar como verdadeiras as variações dessa teoria é se precipitar imprudentemente.
Fugi de São Paulo por três dias. Escolhi a Barra do Sahy e o seu mar consolador como um paliativo pra minha Caduca Tristeza. Não que eu não gostasse dela, não me entendam mal! A Tristeza sempre foi uma fiel e silenciosa companheira que, no mínimo, me rendeu uns bons textos. Mas férias conjugais são necessárias até para os melhores casais. Então, parti logo pela manhã, deixando a matrona dormindo em paz e poupando-nos de qualquer despedida embaraçosa (e desnecessária. Tristeza não diz tchau).
Confesso que durante as quatro horas de viagem que separavam a minha cama da cama que eu ocuparia no Sahy, senti uma solidão inquietante. Prevendo a saudade que eu sentiria, desejei, em silêncio para que nem eu mesmo escutasse, que os próximos três dias não demorassem a passar.
Era esse pensamento que habitava a minha cabeça quando entrei no quarto da pousada e visualizei a cama que eu ocuparia. Lá encontrei, deitada, o seio descoberto, plácida e confortável a minha Tristeza, dormindo um sono imperturbável.
Fiz o que deveria ser feito. Abandonei as malas logo à porta do quarto, fechei a cortina para o sol inoportuno e deitei-me com a Tristeza. Acariciando-lhe a fronte adormecida, dedicando-lhe ao mesmo tempo asco e gratidão, aproximei-me de seu ouvido e revelei minha recente descoberta, num tom somente possível em uma declaração de amor ou em uma sentença de morte:
“.. mas um mesmo corpo ocupa dois espaços ao mesmo tempo...”

CARTA DE AMOR Nº 56

Thursday, May 03, 2007

Abra esta carta lentamente
Despindo cada dobra do papel
Mostrando a nudez de minhas palavras
Também o meu amor com a pele exposta.

Leia cada frase atentamente
Sentindo que ao ler-me, eu te beijo
Cobrindo tua pele completamente
Fazendo da minha boca única veste.

E ao terminar de ler minha alma escrita
Espero ter você chorando aflita
Desejando agora o nosso amor refeito.

Mas se não lhe basta a minha alma posta
Guarde-a com minhas cartas sem resposta

Pra que um dia eu faça delas nosso leito.

 
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