NÃO USA CHINELO QUE CAI DO PÉ

Thursday, January 14, 2010




O certo seria um mal deitar e já levantar-se. Flutuando a 30 cm do chão do quarto, abrir a porta mal trancada da casa e ganhar o lado de fora. Os olhos podem estar abertos ou fechados, é facultativo. Quem olha, nesses casos, é o umbigo. Verdade; é o umbigo o mais próximo que há daquele aperto no estômago quando sentimos que o que há já não basta. Ganha-se o mundo e mira-se o umbigo no além, abrindo os braços à meia altura pra sentir o vento que vai ficando pra trás.
O certo seria ter mapas decorados. Colocar na mente o caminho a seguir e confiar que não há curva que confunda o passeio. Na dúvida, o certo é uma linha só reta que garanta uma ida com volta e a total desnecessidade dos mapas. Pijama mal tem bolso.
Bem certo é ter memória fotográfica e habilidade pra ver tudo o que vai passar muito rápido pelas laterais. Alterne o lado direito com o lado esquerdo, virando o pescoço repetidamente. Não tem nada que não mereça ser visto, nas direitas e esquerdas. Tivesse deus dado aos homens os olhos no lugar das orelhas e as orelhas onde julgasse ser mais prático, eu não precisava dar essa recomendação. Em todo caso, as dele não devem funcionar, pois eu já pedi e as minhas não mudaram de lugar. O certo é fazer uso do pescoço.
E durante a viagem, bem certo é manter os pés fora do chão. Não deixe pegadas; caso descubra algo brilhante que não queira dividir com ninguém, as pegadas seriam imprudentes.
Agora, se quer ter o certo, ao retornar não perca a viagem da mente. Não subestime a utilidade de qualquer coisa que trouxer do caminho. Guarde num canto e deixe brotar. Mas não fique encarando, porque quando ficamos assistindo, nem o leite nem as ideias fervem.

Deixe um copo de água do lado da cama. Quem é sonhador sempre acorda cansado.

BEM ME LEMBRO...

Friday, January 01, 2010

Nunca entendia a Dona Clara. Mas eu era só uma criança.
Viúva há tempos, já tinha mais tempo de saudade do que de casada. Não sei como era antes, mas, desde quando possa me lembrar, ela sempre fez questão de estar sozinha. Não se via Dona Clara em rodas de conversa no portão de casa, nas quermesses que a diocese organizava todos os junhos, em batizados, enterros, confusões ou simplesmente compondo a multidão. Ela não saia muito na rua e o pessoal da nossa cidade quase se esquecia de pensar nela.
Quase, porque era nos bailes do fim de ano que o povo da cidade se lembrava de Dona Clara. Ela aparecia bem decorada, com suas maquiagens e as pérolas nas orelhas e em volta do pescoço. O cabelo era preso num arranjo de fios brancos e tiara. Impecável, a Dona Clara no salão. E todos os olhos se voltavam para ela; os sorrisos se abriam, mais como reação de uma lembrança que julgávamos esquecida e que, repentina, voltava à mente. Sim! Dona Clara, minha gente! Lá vai Dona Clara; quanto tempo eu não a via!
E sozinha Dona Clara se sentava bem à beira da pista de dança, a observar os casais dançando os boleros e baladas que a banda regional tocava. Sozinha. Ninguém nunca lhe dirigia a palavra. E eu ficava sentado a observar a Dona Clara, até que ela fosse embora com um ar de missão cumprida.
Foi assim todos os anos, menos aquele em que um garoto resolveu tirá-la pra dançar. Eu estava sentado, ocupado na minha tarefa de guardar Dona Clara do outro lado do salão, quando vi um garoto engravatado se aproximar dela. Não sei se por pena, por curiosidade ou simplesmente para fazer graça, mas o garoto resolveu romper com a tradição e estendeu a mão à Dona Clara.
Me lembro que banda parou de tocar. As luzes do salão se apagaram e apenas um foco se acendia para destacar a senhora e o garoto.Um rufar de tambores se iniciou, enquanto o baile todo voltou sua atenção para Dona Clara, esperando sua sentença. Uma mão estendeu um microfone na altura da boca da senhora e, quando os tambores se silenciaram, Dona Clara declarou:

“Vai lá, meu bem, que eu sou de olhar, não de participar.”

O menino foi embora constrangido, a banda voltou a tocar e o baile tratou de esquecer-se do ocorrido. Dona Clara foi embora e nunca mais se soube dela.
Eu não entendia mesmo a Dona Clara quando eu era criança. Só fui mesmo entender quando descobri que eu também sou de olhar, não de participar. Mas então já não tínhamos bailes, nem boleros e, muito menos, Dona Clara.

 
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