VÔO

Wednesday, August 08, 2007

Eu entrei na sala muito nervoso. Era a minha estréia. Eu nunca havia antes assistido o nascimento de um futuro brilhante.
Sentei no lugar guardado pelo meu próprio nome. Meu nome. Eu tinha um lugar naquela sala. Ao pensar nisso, sorri pela primeira vez naquela noite.
No palco, um casulo é revelado pela luz. Nele, ainda oculto, minha borboleta era adivinhada por todos os presentes. Não era nenhuma proeza de nossa parte, era naquele casulo que caia o único facho de luz em quilômetros. Ela não poderia estar em qualquer outro lugar. E só dela poderia sair tanta luz.
Com o rompimento do casulo, ouço a primeira rufada de sangue tingindo as paredes de vermelho. Não seria a única. E não era qualquer vermelho. Era o vermelho que toma conta dos olhos depois do choro e da face antes do amor. Minha borboleta também previa o futuro, olhem só! E do casulo surgiu, indecorosa, minha poetisa-borboleta e sua verborragia inebriante. Sorri pela segunda vez, enquanto a escutava; senti-me em casa novamente.
Mais sangue na parede. Aquela platéia não se dava conta, mas estava assistindo a um duelo. Minha borboleta voava como a pequena gladiadora que é, escalpelando com sua espadinha de luz todas as camadas de pele calejada que recobria nossos sentidos. Cortava e cortava até o sangue espirrar; nítida prova de ter alcançado a última camada de nossas peles. Única amostra de que nossos corações ainda batiam.
Quando todos já choravam de dor e clamavam por clemência, minha borboleta guardou sua espada. Dedicou-se então ao tratamento dos feridos. Pousava de coração em coração, pingando de suas lágrimas sinceras em nossas veias, diluindo todo esse sangue espesso e escuro que ainda nos restava. Precisávamos ser leves para compreendê-la.
Foi então que me perdi completamente. Suas lágrimas em minhas veias tiveram o poder de me retirar da realidade, me elevar aos céus da criatividade e eu também me vi borboletando. Ah, minhas asas... Queria que tivessem visto minhas asas. Mas exaustos pela batalha, incautos por natureza, a platéia não se deu conta do que acontecia.
Só acordei com o que pensei serem os aplausos. Levantei-me para me juntar ao coro dos resgatados, mas só para descobrir que não eram aplausos que eu escutava e também não era o choro que me escondia as feições. Na verdade, chovia torrencialmente.
Descobri-me ao ar livre; minha borboleta tinha aprontado mais uma das suas. O teto da sala desaparecera. Não sei se arrancado, não sei se fugido. Aposto que saiu calmamente, abrindo espaço para que as idéias de minha borboleta pudessem rodopiar. Olhei para o céu na mesma hora, era ali que estava o verdadeiro espetáculo que ela havia nos preparado.
Voltei minhas atenções para dentro da sala quando os verdadeiros aplausos quebraram o silêncio do escuro. Surpreendeu-me a inversão de papéis que se seguiu. Não era a minha borboleta que se curvava em sinal de agradecimento. Era a platéia que estava curvada em uma postura de adoração. Minha borboleta sorriu para mim, que a admirava inconteste. Eu sorri de volta, e pela última vez naquela noite, simplesmente porque ela havia me salvado.Foi com esse sorriso na cara que ela partiu. E foi o mesmo sorriso que eu a entreguei que se viu banhado novamente. Agora não era mais a chuva, eram minhas lágrimas. Não eram lágrimas de despedida. Eram lágrimas antecipadas do nosso reencontro, banhando a certeza de que eu também sabia voar.

3 comments:

Flávia Lucato said...

Como eu amo esse poeta.

Rebeca Rezende said...

Eu sempre quis ser borboleta, para morar em uma casinha pequenina e poder voar pra onde nunca fui. Pra cá das minhas despedidas.
E poder ir-me embora, sem me preocupar por não ser nada mais do q lembrança nos lugares que abandonei.

Acontece q nasci sem asinhas. Vivo de pedaços de vôos que sempre quis fazer.


lindo texto Fê
quero um dia ir ver a peça
beijos

Anonymous said...

Lindo!

mais lindo ainda pra mim porque eu estava lá, sentadinha ao lado, com um turbilhão de sentimentos próprios também rodopiando. ah. como eu queria conseguir expressá-los!

lindo!

 
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