A LA CIMA DEL CIELO

Monday, September 18, 2006

A velhice do sapatinho já estava caducando. Aquela senhora olhava para ele como quem olha para uma ampulheta com seus últimos grãos de areia esperando sua vez de correr.

Ela dançava bolero. Tantos passinhos de dança! Ela sempre dançou miudinho mas, mesmo assim, seria capaz de dar a volta ao mundo se dançasse em linha reta. Mas se é pra voltar pro mesmo ponto, pra que sair daqui, não é mesmo?, dizia numa gostosa gargalhada. Isso foi na época em que o sapatinho não estava caducando. Não dançava coisa que não fosse bolero! É só com ele que o sangue fica morno. No tango, o sangue até esquenta, mas atinge o ponto de fervura, inevitavelmente. O bolero deixa o sangue morninho, morninho, no ponto em que dá vontade de chorar.
Depois de muito relutar, pegou o seu LP de Pancho Lyra, mudo desde que começou a juntar poeira. Ela sentia muito frio e a vontade de dançar trazia um incômodo ritmado; quase poderia dançar seu desconforto.

Agulha no disco.
De llevarte a la cima del cielo, donde existe un silencio total...

O sapatinho a esperava amuado em cima da cama. Queria dizer que não sabia mais dançar. Queria dizer que fazia tanto tempo que sua memória de sapatinho caduco não conseguia recuperar o bailado de outrora; sua aparência deteriorada era quase um pedido de desculpas.
A senhora sentiu a alma mais velha do que nunca. Não conseguiria nem mesmo calçar aquele sapatinho. Pra quê? Onde está o seu par? Onde estão os homens vestidos de lavanda, tão bem barbeados? Onde está a força de um braço conduzindo um mundo de pensamentos, sentimentos e aflições? Onde os olhares famintos que a seguiam pelo salão?
Sentia-se acima do céu, perdida em meio a um silêncio total que nem mesmo a voz abaritonada de Lyra quebrava. E achou curioso como, mesmo sem o bolero a amornar-lhe o sangue, sentia a vista chorar.

1 comments:

Anonymous said...

Porque quando o registrou como Belo, Deus tinha muita certeza do valor de Sua criação...é uma bênção te ter como amigo. E é impressionante como você sabe doer dentro de quem tem alma. Isso é um elogio. Bjão - C

 
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