PAPO DE BOTECO

Sunday, September 24, 2006

O banco de passageiros do meu carro é uma perfeita paródia desse meu incauto coração; excetuando-se, é claro, algumas diferenças geográficas e físicas. Quantas vezes já se repetiu essa cena? Eu, inquieto ao volante, observando com a orelha a moça sentada à minha direita na passiva posição de quem é levada pra casa. Do lado oposto do carro, meu coração tentando se localizar no espaço-tempo. Tendo em comum a alta rotatividade e a freqüência de visitas, aposto que, se pudessem superar a cruel divisão de classes entre órgãos humanos e objetos inanimados, meu coração e o banco seriam grandes amigos, daqueles de tapinhas nas costas. Ou pelo menos teriam conversa pra preencher uma noite de boteco.
O coração diria ao banco que inveja sua situação, tão mais confortável. No banco, as moças não se demoram muito, somente o tempo necessário para percorrer a distância entre o fim de noite e a própria casa. Tão pouco tempo que não se criam laços, que por conseqüência não podem ser cortados. Já o banco ia declarar sua vontade de ser coração, querendo é encontrar uma moça que se demore um pouco mais em sua estadia. Que laços sejam cortados! Ele quer é dar nós.
Minhas pálpebras estavam pesando quando deixei a passageira da vez em sua casa. Não por desinteresse, nem por vontade de que a noite acabasse logo; o sono chegava, e ponto. A moça, ofendida, tomou meu olhar fechadinho por um convite a se retirar, me deu um beijinho magoado e se foi. Banco vazio e coração vago, de novo.
Que coisa injusta essa vida que não nos dá direito de defesa. Queria explicar que estava cansado sim, mas que o meu olho fechadinho era chamado para um beijo, e não um eufemismo para o adeus. Ou então desabafar sobre a dura jornada desse estagiário/recém-ator/amargurado universitário/metido à poeta/quase solitário; que ao final do dia deixa só um pozinho de todos que sou.
Mas eu queria mesmo era ser sincero e dizer que, se o sono chegava, era porque eu tinha pressa em sonhar com ela, sentada ao meu lado, acariciando minha nuca enquanto dirijo pela noite sem fim.

A LA CIMA DEL CIELO

Monday, September 18, 2006

A velhice do sapatinho já estava caducando. Aquela senhora olhava para ele como quem olha para uma ampulheta com seus últimos grãos de areia esperando sua vez de correr.

Ela dançava bolero. Tantos passinhos de dança! Ela sempre dançou miudinho mas, mesmo assim, seria capaz de dar a volta ao mundo se dançasse em linha reta. Mas se é pra voltar pro mesmo ponto, pra que sair daqui, não é mesmo?, dizia numa gostosa gargalhada. Isso foi na época em que o sapatinho não estava caducando. Não dançava coisa que não fosse bolero! É só com ele que o sangue fica morno. No tango, o sangue até esquenta, mas atinge o ponto de fervura, inevitavelmente. O bolero deixa o sangue morninho, morninho, no ponto em que dá vontade de chorar.
Depois de muito relutar, pegou o seu LP de Pancho Lyra, mudo desde que começou a juntar poeira. Ela sentia muito frio e a vontade de dançar trazia um incômodo ritmado; quase poderia dançar seu desconforto.

Agulha no disco.
De llevarte a la cima del cielo, donde existe un silencio total...

O sapatinho a esperava amuado em cima da cama. Queria dizer que não sabia mais dançar. Queria dizer que fazia tanto tempo que sua memória de sapatinho caduco não conseguia recuperar o bailado de outrora; sua aparência deteriorada era quase um pedido de desculpas.
A senhora sentiu a alma mais velha do que nunca. Não conseguiria nem mesmo calçar aquele sapatinho. Pra quê? Onde está o seu par? Onde estão os homens vestidos de lavanda, tão bem barbeados? Onde está a força de um braço conduzindo um mundo de pensamentos, sentimentos e aflições? Onde os olhares famintos que a seguiam pelo salão?
Sentia-se acima do céu, perdida em meio a um silêncio total que nem mesmo a voz abaritonada de Lyra quebrava. E achou curioso como, mesmo sem o bolero a amornar-lhe o sangue, sentia a vista chorar.

DE LONGE

Tuesday, September 12, 2006

De certo um engano
Gigantesco equívoco
Malogrado invento
De um vento mundano
Me trouxe sem dó
Pra esse mundo seco
Onde eu sou poeira
Que beira o só.

Não entendo o dialeto
Menos os costumes
Não me identifico
E fico incompleto
Nessa terra rasa
Sem vida ou sentido
Um pobre sujeito
De peito sem asa.

Me levem pra casa, me levem pra casa...

Na minha cidade
O amor nunca enjoa
O moço não chora
Demora a saudade
Não existe desejo
Sem pele que o mate
Nenhuma partida
Na vida de um beijo.

Eu quero ir embora
Voando, bem solto
Num momento breve
Mais leve que o agora
Na forânea brasa
Que avisa, quietinha
Que apesar da calma
Minha alma não atrasa.

Eu quero a minha casa, eu quero a minha casa...

BOA NOITE

Wednesday, September 06, 2006

Deita logo
Do meu lado
Pouco importa
Teu caminho
Nestas tuas
Noites tortas.
O sono pesa nestes
Olhos que te esperam
Lentamente...
Pra fitar-lhe
Tão somente...
Estes teus
Lábios tão gastos
Por ter beijos
Tão freqüentes...
Noutros lábios
Fica o gosto
De um amor que era
Só meu
Mas que neles não
Se perca
Nunca
A frase que
Sempre me adormeceu:


“Deus te dê uma noite boa, que dos dias, cuido eu”.

SÓ LAURA

Sunday, September 03, 2006

Laura só gosta da segunda-feira. Não quer nenhum outro dia.
Ela encontra Fábio aos finais de semana.

Sexta-feira.
Sábado.
Domingo.

E, na segunda, ela sente a dorzinha de um vazio recém-criado. Tem medo de que Fábio esqueça dela entre as confusões dos dias úteis, medo de que alguma quinta-feira decida durar pra sempre, não deixando que a sexta chegue. Mas o maior medo de Laura, o maior de todos, é que uma moça-quarta-feira aproveite sua confortável posição bem no meio da semana, quase eqüidistante do domingo e da sexta, para ter Fábio só pra ela. A covarde...

É na segunda que Laura tem a certeza de querer amar por toda a vida.

Laura ama a segunda-feira!

 
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